segunda-feira, 6 de abril de 2009

Pontos de Cruz

....Volta do trabalho cansada. Depois de refrescar-se, senta-se vagarosamente na cadeira da varanda tentando compor uma imagem com aqueles pontos-de-cruz. Não repara na hora, apenas deixa-se ficar ali por um bom tempo.
....Aos poucos o céu vai mudando de tonalidade. O sol já se avizinha do horizonte e, cada vez mais tímido, avermelha-se no seu ponto de encontro com a linha da serra. É um momento de paz. De um solitário mergulho nessas empoeiradas frestas do tempo.
....A essa hora o silêncio parece abrir as portas. A luz, então se evanesce nesse lapso entre o tempo e o espaço... A vida parece, então, parar por alguns segundos e sorrateiramente se esconder, nesse momento, por trás de pálpebras que se fecham, reflexivamente sobre a alma.
....É ali, naquele instante, que surgem as lembranças para além da ilusão. Memórias que captam o real como um filme, escrevendo nas linhas da vida uma pequena e inusitada história. Detalhes se tornam mais nítidos e vão se definindo. Um momento efêmero que fica para sempre.
....Num gesto quase involuntário ela toca seu rosto tentando encontrar nele as evidências do tempo, apalpando os vincos ali marcados... Estranhamente a pele está mais aveludada e firme... ....O ambiente de paredes esverdeadas mais se assemelha ao de seu quarto de adolescente. Teria então 15 anos?
....Ouve na sala algumas vozes, risadas, gracejos. A mãe, com sua voz grave de fumante, anuncia placidamente a alegre acolhida aos rapazes que chegam.
....Ainda no quarto, estende-se na cama com displicência, tentando ler aquele livro interminável. “Don Casmurro” tornara-se enfadonho àquela altura. Era afeita à leitura, mas grande uma inquietação não lhe permite a concentração necessária para compreender o sentido da história naquele ponto. Queria ir lá fora, tinha que passar por entre os visitantes, captar algum olhar perdido, furtivo, conversar, até participar...
....Ainda absorta e indecisa entre a razão e o desejo, espreguiça-se no momento em que explode retumbantemente o Bolero de Ravel... Vêm-lhe algumas lágrimas. Retida em seu mundo introspectivo aprendera a apreciar a música clássica e outras tantas ouvidas naquelas noites em sua casa. Solitária, deixa-se acariciar pelas sonatas e pelo dedilhar de violões de Dilermando que enchem a casa de uma alegria ímpar e, para ela, peculiar.
....Aqueles rapazes viraram personagens singulares. Vendo-os hoje na mente, depois de mais de trinta anos, percebe que as fisionomias e atitudes funcionam como sinais ou signos de histórias individuais possíveis... Àquele tempo todos faziam parte dessa mesma história. Bach, Beethoven, Mozart, Strauss, Schubert… allegros, adágios, prelúdios, sonatas… tudo se mesclava ao silêncio, à emoção, ao sorriso, à íntima alegria de cada um.
....E apesar de tudo, ela ainda se mantinha no quarto deixando-se tocar por aquela lânguida e macia sensação de paz. Mas, insistia-lhe a vontade de passar naquela sala. A timidez a incomodava profundamente. Ela se contrairia fazendo-se ínfima, invisível, quase afásica, naquele percurso. Seria fácil? Vence então a vontade !! Atravessa a sala. Não saúda efusivamente as pessoas, ou apenas balbucia coisas inaudíveis. As palavras ficam presas em sua boca. Sente-se menor, traída por sua inépcia. Queria muito parar… mas continua. …E sai sem destino, porta a fora em busca de nada. Sai querendo ficar. As perspectivas, as casas, a rua integram um clima de quase sonho. A realidade, porém, parece apenas uma convicção. Noites e noites fora assim. Tinha certeza de que fazia transparecer uma indiferença que não sentia.
....Ainda hoje ouve o tilintar dos copos num brinde mudo aos grandes compositores clássicos. Gim com Cinzano? Não importava o que fosse, ela não participava deste eloqüente ensejo. A música se ocuparia de fazer o seu papel: escrever por entre ritmos e compassos a informal convivência de onde se manteve mera passageira.
....Agora, sabe que agindo dessa forma, infiltra-se nos mistérios do não saber que o sonho fora possível ou realizável. Bastaria uma derrapagem nesse ajuste, mesmo pequeno e quase imperceptível, para que tudo se tornasse realidade.
....Hoje, mesmo num tempo indefinido, ela entra íntima e emocionalmente naquelas cenas. Pouco importa o momento e a hora: narrar para si mesma o próprio sonho já é torná-lo verdadeiro.

Por Claude Bloc

3 comentários:

Jaques A Teixeira disse...

A magia do tempo nos mantém prisioneiros e reféns desses momentos eternos em nossas retinas e memórias ,enquanto perdurem. E muito mais vivo permanecem, quando compartilhamos esses momentos e ele acende em algum lugar lembranças semelhantes e despertam emoções adormecidas :cumpre –se o fado ,que é o propósito de todos escritor:despertar reações,incendiar paixões ,afagar sentimentos .
Mormente quando tais imagens ainda estão vivas e unicamente aguardam o momento de ,novamente,desfilarem diante de nós,E nem que seja por breves instantes Kariós,vence Kronos.O rio Letes é cruzado de volta.

JAT

Claude Bloc disse...

Jaques,

Confesso, sou prisioneira desse tempo que me traz de volta emoções tão fortes quanto caras...
Gosto de passear por entre esses momentos. E, como um pintor, ir desenhando a história com paixão e com doçura ao mesmo tempo.
Os sentimentos ressurgem. As cores refluem. E, de repente, me ponho no cenário de uma lembrança e a revivo, e gargarejo os seus sabores. Sinto os cheiros da saudade. O vazio do toque que nunca houve. Ouço as vozes da razão e do desejo tamborilando em minha mente. Sinto-me afogueada, sinto-me resfolegando os sonhos, tentando dedilhar os seus acordes... Gosto sim, de tudo isso que lembro e de como hoje sou e sinto o que passou. E penso: ainda há tempo?

Unknown disse...

A Rosa Azul

O voo vai além das liberdades transitórias,
que o corpo em sua efemeridade permite;
Aos cumes mais longínquos do Cáucaso,
onde vê os abutres devorando o fígado de Prometheu ,
por ter ousado desafiar o poder e nos ter dado a luz,
que jamais se extingue .
Ali ela não estava

Daí desce aos vales dos sonhos ,da segurança
e do aconchego da primeira infância,
Pra outra vez,com suas cicatrizes curadas,
Navegar aos confins das ilhas desertas,
Nos arquipélagos não mapeados,
Escondidos da ganância dos homens,
Só para te trazer uma rosa azul.
Mais ali, não a encontrei.

Segui minha jornada, nos desertos mais longínquos,
Entre a sede e a tempestade de areia,
Me guiando pelo coração e pelas estrelas.
A Procurar entre as tamareiras,
A rara flor do deserto: a Rosa Azul
Também ali, não a achei !

Hoje, sei apenas que tal Rosa existe no coração dos amantes.
Até mesmo aqueles mais tristes ,tem um jardim interior
Que a abriga e protege com amor :A Rosa Azul.

Voltei e entrei,mansamente,passo a passo
Para não te despertar...
Deixei-a ali ,no recôndito santuário
Da tua devoção,a Rosa que colhi
Da minha ilusão ,onde tudo é permitido.,
Até te amar !